Ao observar a sociedade podemos olhá-la pelo viés das representações. Tudo depende de um lugar, de onde está esse conhecimento, de onde vem, que saberes carrega e as relações que estabelece com o mundo que o cerca. O conteúdo do processo representacional está ligado a um tipo de conhecimento e só a relação intersubjetiva proporciona a compreensão das representações. Esse processo implica a existência e a relação entre um sujeito, um objeto e outros sujeitos. Se quisermos entender como isso funciona é preciso entender as relações entre esses elementos.
Segundo Jürgen Habermas (1989), o processo de representação passa por uma ação comunicativa que prevê um sujeito, um objeto, um contexto e um tempo histórico.
Considerando esse contexto, os saberes e os conhecimentos não têm propriedade individual, mas social, e as representações funcionam como processos, através dos quais o conhecimento é produzido e transformado.
As representações sociais nasceram da ideia original das representações coletivas de Durkheim – para quem a vida é feita de representações sociais – e ganharam forma definida em Serge Moscovici. Para ele, as questões sociais relacionam-se diretamente com a difusão das mensagens pelos veículos de comunicação, ligadas a um contingente de elementos que se processam no cotidiano por meio de teorias, ideologias, experiências e vivências.
As representações, do ponto de vista de Moscovici (2003, p.46), não devem ser olhadas como um conceito, mas como um fenômeno. "Devem ser vistas como uma maneira específica de compreender e comunicar o que nós já sabemos". Para o autor, deve-se "[...] considerar as representações como meios de re-criar a realidade".
[...] Para ser preciso, contudo, deve-se dizer que se trata de algo refeito, re-construído e não de algo recém-criado, pois, por um lado, a única realidade disponível é a que foi estruturada pelas gerações passadas. [...] O que nós criamos, na verdade, é um referencial, uma entidade à qual nós nos referimos, que é distinta de qualquer outra e corresponde a nossa representação (Moscovici, 2003, p.90).
A representação social é um tipo de saber que é ação social e é também ação comunicativa. Todo o saber, na sua origem, é um saber local, porque depende de um lugar. As mídias funcionam como lugares onde estes saberes são representados. Mas estes saberes só podem se deslocar de seu lugar local para se transformar em saber universal se tiverem poder e legitimidade.
As representações na mídia podem não ser puramente ideológicas. Justamente vão além do ideológico porque produzem outras funções como, por exemplo, criar identidade. É nestas condições que adentra o discurso da revista Raça Brasil, colocar a vida do negro nas suas páginas para que sinta-se pertencente a esta cultura simbolizada através de um meio de comunicação, fazendo com que este grupo se torne próximo e familiar do seu discurso para que os leitores assimilem e se encontrem dentro deste discurso e passem a pensar da mesma forma.
A revista usa seu discurso como um recurso para a criação de um nós coletivo - os afro-descendentes, onde este discurso do nós é tratado às semelhanças do seu grupo social fazendo com que os afro-brasileiros se descubram enquanto pertencentes à fala da revista e assim fazendo com que os leitores conheçam a trajetória da sua ancestralidade, levando-os a uma reflexão sobre a cultura afro-brasileira e assim construindo sentidos com os quais podem se identificar, construindo identidades.
A revista Raça é um meio de representação e por representação Stuart Hall (2001, p. 50), explica que é através do discurso que são construídos sentidos que influenciam e organizam tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. Sendo a revista um meio voltado para despertar uma consciência étnica nos seus leitores, tendo o propósito de recontar a história do povo negro, dando em suas publicações informações cruciais sobre o papel dos negros no desenvolvimento deste país. A exemplo, da publicação da matéria Nossa história, enfim contada (Edição 87 - Junho/2005), que mostrou uma exposição com documentos, fotos e obras de arte expostos no Museu Afro-Brasil, em São Paulo, evidenciando o negro como integrante ativo na construção da nação brasileira. Segue abaixo parte da publicação da matéria:
"Apague tudo o que você conhece sobre a História do Brasil. Ou quase tudo, já que a versão ensinada na escola sobre a formação da nação brasileira, em geral, desconsidera a participação ativa dos negros na construção do País. Na literatura que se conhece sobre a colonização do Brasil pelos portugueses, o índio é visto como um ser que aceita pacificamente a imposição da cultura e da religião européias e que não se adequa ao esquema de trabalho imposto. O negro, no entanto, é tido ora como passível de pena, por aceitar sua condição de escravo, ora como rebelde fujão, que constrói os quilombos e sofre as conseqüentes punições. Mas quase nunca é mencionado que negros e índios fizeram parte da vida social do País desde a sua formação. "Foram os negros que extraíram o ouro na mineração, cultivaram a cana-de-açúcar e o café, cuidaram do gado e do fumo", lembra Emanoel Araújo, 63 anos, diretor e criador do Museu Afro-Brasil, em São Paulo" (Nossa história, enfim contada Edição 87 - Junho/2005).
A intenção desta matéria é justamente recontar a história do negro com um novo olhar, ilustrando através desta exposição as raízes africanas, a vinda dos negros para cá e a participação na vida cotidiana nestes cinco séculos de Brasil. Acompanhe a seguir trechos do roteiro que a reportagem da Raça Brasil percorreu nesse mergulho no tempo:
"Os objetivos deste trabalho estão lá: "Registrar, preservar e argumentar, a partir do olhar e da experiência do negro, a formação da identidade brasileira...". Em seguida, iniciamos a caminhada em busca de nossas raízes. A primeira parada é uma coleção de máscaras vindas do continente africano, cuja vedete é a Cabeça Nok, artesanato confeccionado pelo povo Nok, que viveu entre 500 a.C. e 500 d.C., e a peça mais antiga do museu. O Núcleo África ainda dedica um espaço para as mulheres, por meio de poemas e esculturas que representam divindades femininas.[...] Além de cuidar das tarefas domésticas, as escravas denominadas amas-de-leite alimentavam os filhos de seus donos. Também estão lá imagens de negros que acabavam morrendo de tanta tristeza e saudade de casa (banzo) e os objetos de aprisionamento e tortura dessa gente. Nesse momento da visita, a miscigenação é lembrada por meio da alimentação: o acarajé, o caruru, o xinxim e o feijão-de-azeite são heranças africanas" (Nossa história, enfim contada Edição 87 - Junho/2005).
Parafraseando Elisa Larkein, "quando se tem por objetivo aprofundar o conhecimento e a reflexão sobre a cultura afro-brasileira, a referência à África não deve ser entendida como volta ao passado, mas como necessidade fundamental para a construção de uma identidade própria".
De acordo com Hall (2001, p.52), a narrativa da nação, tal como é contada e recontada na mídia, ajuda a fornecer uma série de relatos, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentindo à nação. Como membro de tal "comunidade imaginada", ou seja, na revista Raça, os afro-descendentes se veem, dentro desta narrativa como compartilhando as semelhanças. Dando aos leitores um significado e importância à sua existência, conectando suas vidas cotidianas com um destino nacional. Para Habermas, permite pensar que:
[...] os seres humanos também buscam o entendimento e a comunicação e não somente a dominação. [...] se os agentes comunicativos querem executar os seus planos de ação em bom acordo, com base numa situação de ação definida em comum, eles têm que se entender acerca de algo no mundo (Habermas 1989, p.167).
E destaca (1989, p.92) que "[...] as regras do Discurso têm elas próprias um conteúdo normativo; elas neutralizam o desequilíbrio de poder e cuidam da igualdade de chances de impor os interesses próprios de cada um". Portanto, o discurso da revista Raça Brasil atuando de maneira crítica pode possibilitar aos leitores a uma consciência crítica da sua posição na sociedade, estimulando a iniciativa de combate ao racismo, exigindo medidas compensatórias visando amenizar a situação do povo negro e valorização da sua cultura. O ideal de uma ação comunicativa é, portanto que haja interação entre o emissor e o receptor. O mesmo autor (1989, p.79) chama "[...] comunicativas as interações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo conhecimento intersubjetivo das pretensões de validez".
* Retirado da minha monografia: As representações
Sociais na Ressignificação da Identidade Ética do povo negro: no caso da revista
Raça Brasil. Defendida na semana da Consciência Negra
em 23 de novembro de 2006.