Como hoje é dia da Mulher Afro Latina Americana e Caribenha irei recontar a história desta que foi uma grande mulher - Minha avó
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Minha avó e o padastro do meu pai |
Minha falecida avó, a matriarca da família Tavares, Dona Maria Domingas, era a Griot da família, nascida em 22 de dezembro de 1917, em plena primeira grande guerra mundial e viveu na era de Virgulino Lampião, o rei do cangaço, que segundo ela, "esse povo não prestava"! Mulher, negra, era lavadeira, morava no bairro da barra e anos depois mudou-se para o bairro da federação. Tinha uma lucidez invejável e se lembrava de datas, nomes e sobrenomes das pessoas que a cercavam, detalhes de roupas e acontecimentos.... Ela me contava muitas histórias da sua vida as vezes até sozinha ela conversava e ria muito de todas.
Adorava ir para o quarto dela, me deitava no chão e ficava ouvindo suas lembranças de quando era mocinha, dos seus namoradinhos (e como namorou viu), da sua devoção por Santo Antônio daí o nome do meu pai, pois foi uma promessa que ela fez aos pés do tal Santo na igreja aos 15 anos, pedindo que tivesse um filho bem no seu dia que lhe daria o seu nome, e assim foi, no dia 13 de junho de 1947 nasce o seu quarto filho o meu genitor Antônio Carlos.
Foi mãe de 5 filhos de 3 pais diferentes até a sua morte restaram 2 filhos vivos, sendo meu pai o que a acompanharia por toda a sua vida. Ela se orgulhava de ter conseguido realizar seu maior desejo na vida, que era de se casar na igreja e conseguiu depois de três fracassados relacionamentos, aos 55 anos casou-se com Joaquim Roque da Silva, não era o meu avô biológico e nem cheguei a conhecê-lo, mas foi o pai que meu pai teve. E segundo ele, era um homem muito bom que respeitava minha avó, mas com este não teve nenhum filho!
Lembro da minha avó se gabando da sua beleza jovial, dos seus grandes cabelos e de como os prendia, das panelas de barro que ela quebrava escondido porque não gostava de cozinhar nas malditas panelas. Das cirandas de roda que ela participava e também da sua vida sofrida...perdeu a mãe ainda criança aos 6 anos, sendo criada por uma mulher conhecida da família, ou melhor, morava de favor e era feita de empregada; a tratavam na rédea curta, a deixavam dormir no chão, minha avó contava que comeu o pão que o diabo amassou com ela!
Passou fome e foi muito humilhada na vida, a vergonha de ser mãe solteira era a pior humilhação naquele sociedade arcaica, onde a mulher só era valorizada se tivesse um homem ao lado e se casa-se aos pés do padre na igreja.
Já adulta, tomava seus porres para minimizar as angústias que segundo ela, já bebeu muita cachaça de erva doce para esquecer a pobreza e a falta de comida na mesa a fazia comer fruta pão com pimenta para poder ficar de pé e lutar por uma vida melhor, que chegou...graças ao filho da promessa que fez a Santo Antônio, que cedo começou a trabalhar para ajudar a família. Ele conta que foi uma vida de sofrimento, mas não deixava de ir para a escola, ele diz que as lembranças doem, que ficam amargando a vida e que ainda hoje chega a ter pesadelos!...
Me vem à memória a sua linguagem própria - Ô dia que me rir, ou então, - Eu me apoquentei!.. A minha avó era uma torcedora do Vitória fanática e ficava batendo na madeira quando - O tar-le do Bahia como ela chamava pegava na bola em jogos do BaVi e toda hora gritava - Bora Vitória!!!! Ela ficava ouvindo os jogos com o seu radinho a pilha, confesso que ficava com uma raiva desses barulhos.
Recordo-me dela assistindo o jornal e sempre falava a mesma coisa - A polícia de São Paulo não tem sossego! E quando à noite caia ela dizia - Já turvou, à noite só é boa para quem namora!
Possuía um grande vigor físico, já conseguiu entortar uma chave ao abrir a porta e carregava sem inclinar as costas uma caixa com 10 leites em líquido. Uma vez ela foi ao banco receber o dinheiro da sua aposentadoria e na hora de assinar o seu nome a mulher já foi pegando na sua mão para ajudá-la e ela então puxou a caneta retrucando - Dê cá a caneta minha filha porque eu não fugir da escola não! Até o seus 80 anos mesmo com catarata nos dois olhos e sem usar óculos ela lia livros, enxergava letras miúdas e o médico oftalmologista falou - Isso é o instinto!
O que mais eu gostava de ouvir era seus contos sobre a vivencia do candomblé e umbanda ela que foi iniciada apenas com uma surra de folhas e incorporava o caboclo chamado Rei das Flores e uma Erê de nome Crispiniana.
Lembro dela me contando do quanto ela ajudou as pessoas fazendo as "mandingas", dos ebós que fazia e da sua paixão incondicional por Oxum, ela foi a primeira que me disse que tinha esta deusa das águas doce, me ensinou muitas mandingas e hoje meu pai fala - Esse dom que você tem é de família, herdou da minha mãe. De apelido Dona Neném, era filha de Nanã Buruku que é representada como a grande avó, deusa dos mistérios a mais antiga divindade das águas que representa a memória ancestral do nosso povo, Nanã sintetiza em si a morte, fecundidade e riqueza. Minha avó adorava fazer "trabalhos" em águas doce ou salgada e me dizia - As águas tudo pode e sempre me dava um único conselho: - Nunca levante uma folha para fazer mal a ninguém!
Lembro que eu ficava espantada, admirada e de olhos arregalados sobre suas histórias as vezes meio tenebrosas e inacreditáveis sobre o que aconteceu com ela e pessoas que a procuravam, histórias sobre os Deuses do Panteão Africano, dos castigos que as divindades aplicavam nela e quem prometia e não cumpria o acordo, foi ela a responsável por me encantar nesta religião!
A velha Neném tinha uma personalidade forte, quando ela amanhecia com a pá virada, de bico pra cima, pra ela botar a mão na cintura, bater o pé e rodar a baiana era daqui pra ali, quando ela amanhecia cantando a gente já sabia...ihhhhh lá vem a tsunami! Vez ou outra ela gostava de dá uns chiliques... (isso ela sabia fazer como ninguém) e quando eu era criança ouvia muito minha mãe dizer - Você parece com sua avó. E um dia Dona Neném falou - Você é mais de Ogum (querendo dizer que era dele minha cabeça) por isso que é assim desassuntada não medi pra ouvir não mede pra falar!
Adorava conversar com ela e uma certa vez me sentei ao seu lado no quintal de casa e pedir para que me contasse sobre a árvore genealógica da família porque queria escrever sobre isso e quisá um dia escrever a minha autobiografia, até parece que minha vida seria grande coisa!
Pois sim, Dona Domingas deixou saudades, ela partiu há 10 anos, aos 86 anos de idade, pegou uma gripe, onde um mês antes acordei sair do quarto e só vi o vulto de minha mãe passando e ainda sonolenta falei - Minha mãe sonhei que minha avó morreu dormindo e cair no sono novamente no sofá da sala e minha mãe respondeu - Deus é mais!
E foi assim, que no dia 10 de março de 2004 por volta das 03:00h da manhã ela faleceu na sua cama, ao lado da foto de Santa Luzia e meu pai (ateu convicto) conta que tinha acabado de sonhar com minha avó, que ela tinha chegado na porta do quarto dele, bateu o pé no chão como de costume chamando o nome dele se virou e saiu. Meu pai nessa hora acordou, foi até o quarto dela, colocou a mão nela e triste falou pra minha mãe - Olha Lourdes, ela foi agora, ainda está quentinha! Dona Maria Domingas não deu trabalho na sua velhice ela mesma lavava as suas roupas, dançava, saracutiava, comia de tudo e muito bem, dormia mais ainda, só foi uma semana para ela cair doente e falecer. E teve uma morte muito boa, pois só os bons morrem assim.
* Os griots são os guardiães, intérpretes e cantores da História oral de muitos povos africanos. Na língua mandinga são conhecidos como jali e na África Central como mbomvet. Todos eles possuem uma função social bastante semelhante e de grande relevância.