Continuação...
Há também uma outra forma que a revista encontra para narrar a vida dos negros pobres através de alguns estilos musicais, a exemplo, estilo hip-hop, rap e funk, fazendo desses estilos musicais uma forma de apresentar um protesto feito por músicos que dizem representar a periferia.
Começaremos na análise da matéria Eles querem mudar o mundo (Edição 90 - Setembro/2005), que trata de mostrar a atriz Isabel Fillardis e o rapper MV Bill que dizem ter projetos paralelos, mas com o mesmo objetivo que é ajudar a população negra. Na matéria, a revista salienta que o rapper Bill recebeu da Unicef, em 2003 e 2004, reconhecimento como destaque do ano, por ser um dos rappers mais politizados dos anos 90 e publica o depoimento de Bill:
"Quando meus pais chegaram à Cidade de Deus, não havia facções criminosas estabelecidas, armamentos pesados. Cresci vendo a escalada do poderio das armas, das drogas e os bandidos cada vez mais jovens. Fui trilhando um caminho paralelo, por meio do hip hop, que foi a salvação para mim.", conta ele. "Minha marca foi a persistência em ser exceção dentro de uma regra que não me favorecia. Chega de nós, pretos, só sairmos na página policial. Vamos para a seção cultural de jornais e revistas" (Eles querem mudar o mundo Edição 90-Setembro/2005).
A revista trata de narrar a vida de MV Bill como uma forma de vida padrão de todos que moram em favela, que teve de largar os estudos para trabalhar e ajudar a família. E que foi através da música que sua vida mudou, mas não deixando de olhar para as suas raízes, o rapper MV Bill admite que sua inserção na mídia mudou de uns tempos para cá. Do estigma de criminoso que fazia apologia às drogas, à época do lançamento do videoclipe Soldado do Morro, Bill transformou-se em personalidade cortejada pela imprensa. "Isso não me seduz, não cria em mim um sentimento de superioridade em relação a ninguém. É importante lidar com a mídia, saber usá-la para a transmissão de nossas ideias".
MV Bill emenda: "Tenho que saber defender meus pensamentos. Precisei amadurecer discurso, fala, comportamento. As questões das quais trato não são para fazer carnaval". O rapper se orgulha de não cair na tentação da fama e ter raízes fincadas em sua comunidade. Consciente, também se gaba de ter levado a mídia para dentro da favela. "Fiz isso não só no Rio de Janeiro, mas em outras favelas no Mato Grosso, Ceará, Minas Gerais e Santa Catarina. Aprendi a dialogar com a mídia, a falar o português e o favelês, com pessoas de todas as classes sociais, de todas as raças".
Rosana Santos (2002) analisa que ao mesmo tempo em que os rappers atacam a mídia – nas músicas, nos discursos durante os shows e no dia a dia – eles precisam dela como canal de divulgação de sua arte e de suas ideias. E a revista Raça atua nesta posição de divulgar o trabalho destes músicos que tratam de falar a realidade que existe em nosso país, usando a figura de rappers conhecidos para falar desta identidade cultural.
Segundo Erving Goffman (1988), toda vez que uma pessoa estigmatizada alcança uma posição de prestígio social, geralmente recebe a incumbência de representar o grupo estigmatizado ao qual pertence. Da mesma forma, toda vez que uma pessoa que tem um estigma torna-se destaque por feito extraordinário é motivo de comentário em toda a sociedade. Assim, os membros de seu grupo, nessas ocasiões, tornam-se sujeitos a uma transferência do mérito ou demérito da ação do colega.
A revista usa o discurso metafórico do vocabulário musical para trazer à tona elementos de um discurso que é diferente - outras formas de vida que saem da classe média negra da exaltação do black is beautiful para ir para as periferias evidenciando uma outra representação, porém sendo uma representação superficial já que usa o discurso de cantores famosos para falar desta realidade em razão destes mesmo rappers ainda morarem na favela e terem tido uma vida difícil como todos os moradores da periferia. Como aconteceu nesse depoimento do rapper Rapin Hood ao novo cd do Bill:
"A quem interessar possa, MV Bill é um grande guerreiro, o mensageiro da verdade não está para brincadeira. Politizando o gueto, o militante Bill vai abalando as estruturas de um cenário cada vez mais triste aos olhos do jovem negro e pobre em nosso país. Saídas devem ser apontadas, a verdade deve ser mostrada e isso ele faz com muita competência, ritmo e poesia. Bases que eu teria usado, rimas que eu teria escrito, nossas mentes se identificam. Tamo junto e misturado, lado a lado nessa luta diária para que nem o meu , nem o seu filho sejam o próximo falcão. Deus o abençoe nessa caminhada, pois eu sei que na periferia o bagulho é doido. Fiquem na paz, liguem o som e aumentem o volume porque é Rapdubom" (Ensaio MV Bill e Depoimentos Edição 101 - Agosto/2006).
Eles atribuem a si mesmos o papel de "porta-vozes" da periferia, um dos elementos da identidade do estilo. Alguns deles se atribuem a "missão" de problematizar a realidade em que vivem através das músicas que cantam, com a pretensão de "conscientizar os caras" dos problemas e riscos que o meio social lhes impõe.
Segundo Waldemir Rosa (2005, p.17) "a representação é uma figura cognitiva baseada em uma herança histórico-cultural específica que busca imputar em uma outra realidade social". Rosa ainda explica que "a representação não é uma falsificação da realidade, esta se relaciona com a realidade a que se pretende explicar", (2005, p.17).
A revista usa a música para a construção de um discurso sobre a noção de identidade por parte sobretudo de jovens que moram em comunidades desfavorecidas se tornando algo de grande importância para a identidade dessa comunidade. Aliás, poder-se afirmar que a identidade deste espaço constrói-se especialmente através de representações musicais.
A revista volta a sintetizar tal afirmação ao publicar a matéria especial de 10 anos Raça (Edição 102 – Setembro de 2006). Esta afirmação está presente na voz da cantora Sandra de Sá, ao afirmar que o "Samba, funk, hi- hop. Estes e outros estilos musicais negros marcaram a cena cultural dos últimos 10 anos. Também trouxeram mais alegria ao país, aumentaram os lucros da indústria fonográfica e a conta bancária de artistas de origem humilde", explicando a posição atual do estilo funk "os funkeiros anônimos e pobres, entretanto, vivem na mira da polícia. Mas também ditam o ritmo das pistas de dança - da favela e do asfalto - e ocupam o dia das rádios de todo o país com a irreverência, o protesto debochado e o cotidiano das comunidades negras e desfavorecidas". Ao colocar desta forma a revista enfatiza a ideia de que música funk se apresenta para narrar o cotidiano da população negra favelada.
Segundo António Contador (2001), a música surge como um processo de identificação, e as suas formas narrativas, estabelece-se com a ficção das identificações por referência, reapresentadas nas histórias de vida, tornando familiares afinidades inventadas, e tornando circunstanciais proximidades derivadas de "lógicas culturais".
"A desterritorialização, no caso das culturas passa a ser transformada em termos de identificação cultural, onde com a difusão das suas produções, através dos meios de comunicação as comunidades espacialmente separadas podem considerar-se reunidas". (Célia Guimarães, 1998, p.248)
Joanildo Burity (2002) ressalta que a problemática da cultura é hoje um veio de discussão consagrado, que não apenas retrata uma orientação teórica no campo das ciências sociais, mas também reagrupa as preocupações, classicamente associadas à cultura em torno do tema da identidade. Essa orientação teórica diz respeito à compreensão de que a vivência social é sempre simbolicamente mediada, seja pelo discurso, seja pelas manifestações artísticas em sentido amplo, de modo que tanto se pode dizer que tal vivência é culturalmente construída, como dizer que a cultura é uma construção social, que interage de forma complexa com os diferentes lugares e práticas onde se situam ou por onde circulam os agentes sociais, dando sentido e direção - ou questionando-os a seus pertencimentos e ações.
* Retirado da minha monografia: As representações
Sociais na Ressignificação da Identidade Ética do povo negro: no caso da revista
Raça Brasil. Defendida na semana da Consciência Negra
em 23 de novembro de 2006.
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